Pesquisas desvendam conexão entre cultura psicodélica e onda de inovação dos anos 60 e 70



Pesquisas desvendam conexão entre cultura psicodélica e onda de inovação dos anos 60 e 70

 

As pesquisas com essas drogas eram promissoras meio século atrás, quando foram interrompidas em quase todo o mundo, e continuam a ser animadoras na atual fase de retomada.

Aquela que ficou conhecida como “A Mãe de Todas as Apresentações” foi um vislumbre assombrosamente preciso do futuro. Realizada na Califórnia há pouco mais de meio século, ela mostrou pela primeira vez, por exemplo, uma conversa por vídeo em tempo real de duas pessoas que estavam a 50 quilômetros de distância entre si; hoje, videoconferências por ferramentas como Zoom e Microsoft Teams viraram rotina. O evento também antecipou o princípio de recursos como o Google Docs (quando os fundadores do gigante de tecnologia ainda nem tinham nascido) e a lógica de clicar em uma palavra na tela do computador para ver mais informações sobre o termo selecionado: eram os links de navegação, exibidos na prática quando a internet nem sequer existia.

Foram tantas as novidades exibidas ao longo de 90 minutos que, para gente mais cética, se não houvesse testemunhas, os relatos poderiam até soar como alucinações. Afinal, aquele momento era o auge do movimento hippie, a cidade era São Francisco, uma espécie de capital da contracultura, e o palestrante — que chamou de “rato” a caixa de madeira presa a um fio com a qual ele enviava os comandos ao computador (sim, também o mouse foi visto naquele dia pela primeira vez) — era um ex-voluntário em experiências com drogas lisérgicas. A apresentação foi feita pelo engenheiro norte-americano Doug Engelbart, no dia 9 de dezembro de 1968. Ela é considerada hoje um ponto de inflexão na indústria da tecnologia. Tudo foi diferente depois da passagem de Engelbart pelo palco do Brooks Hall, um auditório com capacidade para 2 mil pessoas no que é hoje conhecido como Vale do Silício.


A exibição de 1968 foi um dos tantos episódios que ajudaram a construir a aura da região como uma espécie de padrão ouro da inovação no mundo ocidental. Na área ao sul da Baía de São Francisco, na Califórnia, surgiram algumas das empresas que mais transformaram os negócios — e o planeta — nas últimas décadas. A cidade foi um dos principais centros das experimentações psicodélicas dos anos 60 e 70, época em que a região também começou a se estabelecer como grande polo de inovação. Mas há correlação nisso? O uso de substâncias como o LSD contribuiu com a onda de criatividade e inovação, como alguém poderia depreender, por causa da simultaneidade desses fenômenos?

A pressa para encontrar uma resposta tem crescido — e fez surgir a “renascença psicodélica”, termo que deu nome a um livro publicado em 2012 pelo psiquiatra norte-americano Ben Sessa. De um lado, há a pressão por produtividade nas empresas e por criatividade entre os empreendedores. De outro, está a curiosidade que personagens da vida real e da ficção despertam. O escritor irlandês Alan Glynn lançou em 2001 o romance The Dark Fields, em que o protagonista toma uma droga experimental que o deixa mais inteligente e criativo — capacidades que ele usa para obter sucesso no mercado financeiro. Uma década depois, o filme Sem Limites, inspirado na obra de Glynn, fez sucesso com o ator Bradley Cooper no papel principal.

A onda ganhou força em 2018 com a publicação de Valley Of Genius: The Uncensored History of Silicon Valley, livro em que o autor norte-americano Adam Fisher conta a trajetória dos fundadores de algumas das empresas mais bem-sucedidas do Vale do Silício, incluindo suas experiências com alucinógenos.

Curiosidade histórica
Não há uma só explicação para a “renascença psicodélica”. O fenômeno tem ganhado força porque, nos últimos anos, deu-se uma pequena abertura para as pesquisas científicas. Algumas centenas de estudos produzidos nos anos 60 mostravam resultados promissores no uso de alucinógenos para fins medicinais. O próprio Doug Engelbart foi um dos 350 participantes das pesquisas que a International Foundation for Advanced Study (Ifas), um centro de estudos privado, realizou entre 1961 e 1965 para avaliar os efeitos do LSD e da mescalina — alucinógeno natural encontrado no peiote, um tipo de cacto — sobre a criatividade. As invenções exibidas na “Mãe de Todas as Apresentações” foram, sim, uma evidência concreta da enorme capacidade inovadora de Engelbart e sua equipe no Stanford Research Institute (SRI). O que ocorre é que, por falta de evidências que permitissem fazer um paralelo entre inovação e drogas lisérgicas, as experiências de figuras como Engelbart com essas substâncias acabam sendo, no máximo, uma curiosidade histórica.

A Ifas chegou a publicar seis estudos sobre a correlação entre as substâncias alucinógenas e o aumento da criatividade. Em 1965, no entanto, o FDA, agência do governo norte-americano responsável pelas aprovações de novos remédios, suspendeu as licenças para pesquisas com psicodélicos. Era o início da repressão que criou o limbo de conhecimento que existe hoje. Cinco anos após a medida do FDA, em 1970, foi publicado o Controlled Substances Act (Lei de Substâncias Controladas), que classificou o LSD como uma droga de nível 1. Nele, as autoridades declararam que não só a substância podia desencadear uso abusivo como não tinha nenhum valor médico. A esse ato se seguiram três diferentes resoluções das Nações Unidas que, na prática, tornaram inviáveis as pesquisas em todo o mundo.

Isso não quer dizer que o debate tenha desaparecido. O químico suíço Albert Hofmann, o primeiro a identificar os efeitos alucinógenos do LSD, ingeriu microdoses da droga ao longo de décadas e defendeu seus benefícios até morrer, em 2008, aos 102 anos de idade. O simpósio em Basileia, na Suíça, organizado para celebrar o centenário de Hofmann, em janeiro de 2006, foi um marco na retomada sistemática das pesquisas com a droga. No discurso de encerramento, ponto alto do evento, Hofmann declarou que sua “criança problema” ainda se tornaria uma “criança prodígio”.

Bilionários
O efeito do LSD e outros alucinógenos sobre a criatividade e a imaginação, como Hofmann descreveu há quase 80 anos, também está por trás do forte crescimento das pesquisas sobre essas drogas no mundo. Não é possível comercializá-las, mas a perspectiva de aprovação de remédios feitos à base dessas substâncias tem atraído investimentos pesados. O megainvestidor Steve Cohen — que inspirou a criação do personagem Bob Axelrod na série Billions — e Bob Parsons, fundador da GoDaddy, são dois dos abonados do mundo das finanças que têm colocado recursos nas pesquisas sobre os efeitos de drogas como o ecstasy, nome popular do MDMA, no tratamento de distúrbios psiquiátricos, dor crônica e melhoria da capacidade mental. A Compass Pathways, empresa britânica que patenteou uma versão sintética da psilocibina, princípio ativo dos chamados “cogumelos mágicos”, tem entre seus investidores outro bilionário, Peter Thiel, fundador do PayPal e um dos primeiros investidores do Facebook.

Esses aportes têm criado um mercado formal para essas substâncias que deve crescer de maneira rápida nos próximos anos. Segundo um relatório publicado em junho pela empresa de pesquisas Data Bridge Market Researcher, em 2019, o segmento movimentou US$ 2 bilhões só nos Estados Unidos. A estimativa para 2027 é de receita de US$ 6,8 bilhões. Com essa perspectiva de mercado, no último dia 18 de setembro a Compass lançou suas ações na bolsa Nasdaq — e os papéis subiram 71% na estreia. Três dias depois, a MindMed, considerada uma das empresas mais promissoras nas pesquisas sobre drogas psicodélicas, revelou o início do processo para também fazer sua abertura de capital. A startup tem estudado os efeitos de uma substância criada com base no LSD e no ecstasy.

Compass Pathways e MindMed estão atraindo dinheiro mesmo sem ainda ter de fato um produto para vender. Na verdade, só recentemente chegou ao mercado um remédio com funcionamento similar ao de drogas como LSD e DMT —, esta, um dos componentes da ayahuasca, conhecida como chá do Santo Daime no Brasil. A FDA, agência reguladora de medicamentos e alimentos do governo americano, aprovou em 2019 a venda do Spravato, spray nasal usado contra a depressão e que tem efeito quase instantâneo. O remédio, produzido pela farmacêutica Janssen, uma subsidiária da Johnson & Johnson, é considerado um dos grandes avanços do mercado de drogas psicodélicas.

A falta de produtos deve-se, em parte, ao conhecimento limitado sobre essas substâncias. Um exemplo: Albert Hofmann, que descobriu o LSD, defendia o uso de microdoses, mas qual é, afinal, o volume de uma microdose? Liderado por pesquisadores da escola britânica Imperial College London e da universidade Maastricht, da Holanda, um grupo de cientistas publicou no ano passado um artigo sobre algumas dessas questões. Em resumo, o que os autores constataram é que ainda é preciso pesquisar mais antes de haver consenso sobre esses parâmetros básicos. Para saber se microdoses de psicodélicos melhoram a criatividade é preciso definir o que é microdose e o que é criatividade.

Ao longo dos anos, diante desse quadro, os pesquisadores trabalharam como podiam. “Os cogumelos nunca ficaram sabendo que eram ilegais”, costuma dizer o psicólogo James Fadiman. Aos 81 anos, ele é possivelmente o pesquisador que há mais tempo se dedica a estudos sobre psicodélicos e criatividade: quando os hippies começaram a dominar a paisagem em São Francisco, há mais de cinco décadas, ele já trabalhava no tema. Sua “receita” aparece no livro Psychedelic Explorer’s Guide, lançado em 2011: até 10 microgramas — ou menos de um décimo de uma dose comum — a cada três dias seriam suficientes para melhorar o bem-estar, a criatividade e controlar sintomas de depressão.

As pesquisas com drogas psicodélicas eram promissoras meio século atrás, quando foram interrompidas em quase todo o mundo, e continuam a ser animadoras na atual fase de retomada. Em 2014, cientistas britânicos mostraram pela primeira vez imagens de um cérebro sob o efeito de ácido lisérgico: as cores da tomografia atestavam o aumento do fluxo sanguíneo no hipocampo, região cerebral que, entre outras coisas, é responsável por formar memórias e dar contexto a elas.

Esses registros da ciência dão ainda mais força a relatos como o de Steve Jobs. Antes de a Apple surgir — ela foi criada em 1976 —, seu fundador consumiu LSD com regularidade. Jobs, muitas vezes visto como sinônimo de inovação, considerava essa uma das experiências mais importantes de sua vida. Outro exemplo foi o de Kary Mullis, que aprimorou a técnica de indução de reação em cadeia de polimerase, um método que revolucionou as pesquisas biomédicas. Mullis acreditava que a droga tinha colaborado com suas pesquisas. “E se eu nunca tivesse tomado LSD, ainda teria inventado [a reação em cadeia da polimerase]? Não sei. Duvido. Duvido seriamente”, disse ele em 1994, um ano depois de receber o Prêmio Nobel de Química por seu trabalho.

É preciso muita ciência para atestar o que é fato, o que é visão idealizada dessas substâncias ou mesmo pura lenda urbana. Há uma história de que Francis Crick, um pioneiro na pesquisa genética, teria tido a visão sobre o formato de dupla hélice enquanto estava “chapado de ácido”, como o jornal britânico Daily Mail publicou em 2004. Contemporâneos de Crick acham bem possível que ele tenha experimentado a droga, mas não em 1953, quando fez sua descoberta mais famosa. Engelbart, o protagonista da “Mãe de Todas as Apresentações”, em 1968, admitiu que, sob o efeito de LSD, o que criou mesmo foi o tinkle toy — ou, literalmente, o “brinquedo do xixi”. Funcionaria como uma espécie de pequeno moinho flutuante a ser posto dentro de vasos sanitários. Quando o jato de urina entrasse em contato com a peça, ela giraria. A “gamificação” do xixi poderia incentivar meninos a abandonar a fralda. A ideia tem lá sua graça, mas não se pode considerá-la tão revolucionária quanto as videoconferências, o mouse ou o vislumbre sobre o formato do DNA. Era mesmo só viagem.

Fonte: Época Negócios