O desafio de ser nacional



O desafio de ser nacional

 

Fabricantes brasileiras de eletroeletrônicos agora lançam até lâmpadas conectadas para aumentar a variedade de produtos e enfrentar as multinacionais.

O Brasil não é para principiantes. A frase popular do músico Tom Jobim serve para refletir a dificuldade que muitas empresas têm para crescer e alcançar o sucesso no mercado nacional. A máxima vale especialmente para companhias brasileiras que se aventuram em setores competitivos e globalizados, como o da indústria de tecnologia.

Além de lidar com os triviais problemas brasileiros — que vão das tarifas de importação que encarecem peças aos períodos de incerteza causados por crises econômicas ou mudanças bruscas nas políticas governamentais —, essas empresas têm de encarar concorrentes fortes, com acesso a capital e pessoal qualificado, entre outras vantagens.

Resistindo há 30 anos, a Positivo Tecnologia é o principal expoente do Brasil no segmento de computadores e notebooks. Parte do Grupo Positivo, a companhia foi criada em 1989 com o objetivo de montar e vender computadores para escolas. Com o congelamento de recursos no governo de Fernando Collor, em 1990, precisou repensar o rumo e passou a vender computadores ao poder público, nicho que lidera há dez anos. Somente 14 anos mais tarde ela se aventurou no varejo com uma estratégia que ainda mantém: vender produtos eletrônicos diversos com preços acessíveis.

Os notebooks mais baratos da marca têm preço próximo ao de um salário mínimo (998 reais), enquanto os aparelhos de multinacionais começam em 1.200 reais. Com uma receita líquida de 2 bilhões de reais em 2018, 2% mais do que no anterior, a companhia curitibana se considera uma adaptadora de tecnologia para o Brasil, importando componentes para criar produtos adequados ao consumidor brasileiro. Em 30 anos, a Positivo Tecnologia fabricou 30 milhões de equipamentos eletrônicos, em sua maioria computadores.

Hélio Rotenberg, fundador e presidente, conta em entrevista concedida na sede da empresa, em Curitiba, onde trabalham mais de 1.000 funcionários (há mais duas fábricas no Brasil e duas na África), que a história da Positivo é de constante reinvenção. Desde a fundação, foram investidos 490 milhões de reais em pesquisa e desenvolvimento, valor que não é alto para as empresas do ramo, mas permitiu a exploração de novos segmentos conforme foram mudando as necessidades dos consumidores. Hoje a empresa monta celulares, tablets e dispositivos de internet das coisas.

Por alçar voo sobre novos territórios, o nome original Positivo Informática ficou para trás e deu lugar à marca Positivo Tecnologia em 2017. Um dos produtos mais novos é uma lâmpada que muda de cor e pode ser controlada por um aplicativo no celular. Ela custa 100 reais, um quarto do preço local de sua rival Hue, da holandesa Philips. Desde que entrou no segmento de internet das coisas, em julho, as ações da Positivo subiram mais de 120% e atingiram o maior valor desde 2012, com a expectativa de retomada do consumo no país.

Para atender a diferentes faixas de renda, a Positivo é parceira da marca de notebooks Vaio, que antes pertencia à japonesa Sony e hoje é independente, e da empresa de acessórios Anker. Além disso, tem marcas próprias, como a de smartphones Quantum e a 2AM, de computadores para jogos. “É preciso atuar como empreendedor o tempo inteiro. Mas é preciso inovar sem perder de vista os interesses e as necessidades do consumidor”, afirma Rotenberg (leia a entrevista abaixo).

Nas últimas décadas, a indústria de eletrônicos mudou de perfil no Brasil, acompanhando a tendência mundial. O mercado nacional de computadores, que liderou o crescimento do setor de 1998 a 2011, sofreu uma queda de 73% no faturamento de lá para cá. Dados da consultoria americana IDC mostram que o número de unidades vendidas no Brasil passou de 15,8 milhões, em 2011, para 5,5 milhões, no ano passado. Mas, desde 2014, houve um boom nas vendas de smartphones e esses aparelhos passaram a liderar a expansão da indústria. “

Os computadores são mais robustos e o tempo de troca aumentou. O  consumidor compra um computador com uma mentalidade de médio prazo, ao contrário do que faz com os smartphones”, diz Wellington La Falce, analista de mercado da IDC. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica, o faturamento do setor triplicou de 2000 a 2013, mas depois caiu e ainda não se recuperou. Humberto Barbato, presidente da associação, diz que o setor precisa de investimentos: “A melhora do desempenho da economia do Brasil é fundamental para a indústria eletroeletrônica voltar a crescer”.

Também brasileira, a fabricante Multilaser, de São Paulo, vive da arte de driblar crises. Ela começou as operações em 1987 fazendo recarga de cartuchos para impressoras. Em 2003, durante um mergulho na Costa Rica, o fundador Israel Ostrowiecki morreu. Quem assumiu a empresa foi o filho, Alexandre Ostrowiecki, que começou a diversificar o negócio. Primeiro, passou a vender CDs e DVDs virgens e acessórios para computadores.

Depois, vieram as câmeras digitais e os tocadores de MP3. De lá para cá, o número de produtos só aumentou. A Multilaser de 2019 não vende mais cartuchos para impressoras, mas tem mais de 3 mil produtos, como pen drives e celulares. Quase um terço dos produtos, que são responsáveis por 80% do faturamento, é montado no Brasil — entre eles pen drives, computadores e celulares. A escolha do que é produzido aqui é feita com base no custo da importação. Em geral, se superar 50 dólares, o equipamento é montado no Brasil. A estratégia vem dando certo. No ano passado, a receita da Multilaser cresceu 25%, chegando a 1,9 bilhão de reais. O lucro cresceu 6%, para 234 milhões de reais.

“Buscamos ser mais eficientes do que as multinacionais, com mais agilidade e conhecimento do mercado local para adaptar produtos ao gosto do brasileiro. No mercado americano, o custo dos produtos é cerca de 50% menor do que aqui e o poder de compra das pessoas é oito vezes maior. Por isso, o consumidor daqui leva muito em conta o preço”, diz Ostrowiecki.

A diversificação de produtos é uma estratégia usada por fabricantes de eletrônicos no mundo todo. A Apple é um exemplo de empresa que expandiu a área de atuação após a era do computador pessoal. Ela não só criou o iPhone como também tablets, relógios, alto-falantes inteligentes e ainda atua no setor de serviços e produtos digitais, como filmes e músicas. A sul-coreana Samsung começou a produzir televisores em preto e branco em 1969. Hoje, a companhia é líder em vendas de TVs e celulares no mundo. A receita da Samsung no ano passado foi de 208 bilhões de dólares.

O número equivale a 14% do produto interno bruto da Coreia do Sul. A chinesa Lenovo vende hoje seus produtos em 160 países, incluindo o Brasil, os Estados Unidos e a União Europeia. A empresa conseguiu seu primeiro sucesso, nos anos 80, adaptando tecnologia para a China. A Lenovo criou um chip que permitia que computadores da americana IBM processassem caracteres em chinês. Mais tarde a companhia viria a comprar a divisão de computadores da IBM e assumiria a liderança global, além de vender servidores, celulares e serviços de tecnologia.

O que os três casos têm em comum? Os Estados Unidos, a Coreia do Sul e a China são países fortemente integrados à economia global. E as fabricantes de lá investiram pesadamente na internacionalização.

Para Arthur Igreja, professor especialista em tecnologia e inovação da Fundação Getulio Vargas, as condições enfrentadas pelas empresas brasileiras são entraves à internacionalização.

“Mesmo para as fabricantes multinacionais, um dos principais desafios é lidar com a variação cambial, que dificulta a previsão de receitas. Fora isso, o Brasil tem uma carga tributária alta e as empresas precisam não só se adequar a essa política como também concorrer com os aparelhos que entram irregularmente”, diz ele.

Por outro lado, as empresas instaladas no Brasil contam com a proteção de impostos altos sobre concorrentes importados. Isso pode mudar: o governo já indicou que pretende promover uma abertura do mercado. A mudança colocará negócios em xeque — mas também abrirá novos caminhos.

“Há uma oportunidade de o Brasil se posicionar na cadeia de valor global não só na aplicação da tecnologia mas também em seu desenvolvimento. Com um mercado mais aberto, o que for produzido aqui será consumido globalmente”, diz Marcia Ogawa, líder de telecomunicações, mídia e tecnologia da consultoria Deloitte. Para ela, as empresas que incorporarem tecnologias próprias nos produtos e deixarem de lado o foco exclusivo no Brasil terão mais chance de sobreviver. Para a Positivo, e para outras empresas brasileiras, o que funcionou até aqui, então, talvez não sirva mais. Será a hora de se reinventar de novo.

Numa época em que os computadores começavam a se popularizar, Hélio Rotenberg criou uma divisão dedicada aos PCs dentro do Grupo Positivo, empresa paranaense do ramo de educação. No cargo de presidente há 30 anos, Rotenberg guiou a Positivo Tecnologia durante os altos e baixos do setor eletroeletrônico, surfando a onda da computação pessoal por duas décadas e entrando em novos segmentos, como celulares e notebooks.

Para ele, empresas brasileiras desse ramo precisam ser rápidas para se reinventar e sempre adaptar a tecnologia ao consumidor local, em vez de oferecer apenas produtos globais.

Como a Positivo Tecnologia resiste às oscilações da economia brasileira e à concorrência de empresas multinacionais?

Buscamos oferecer a melhor experiência de uso de tecnologia. Antes, era comum comprar computadores montados por alguém com peças importadas. Era um produto popular no mercado informal.

Por isso, começamos a vender computadores, nos anos 90, montados e já configurados para a internet. Na era do celular, era comum trocar o chip da operadora para fazer ligações e usar a internet. Por isso, criamos modelos com espaço para três chips. Somos uma empresa que adapta tecnologia localmente. Nosso diferencial é ter um profundo conhecimento do consumidor brasileiro.

A inovação é o segredo da sobrevivência no mercado de tecnologia?

Sim. Mesmo em uma empresa de grande porte, é preciso atuar como empreendedor o tempo inteiro. Mas é preciso inovar sem perder de vista os interesses e as necessidades do público.

O que empresas brasileiras de tecnologia devem fazer para internacionalizar o negócio?

É preciso entender muito sobre os mercados e ter parceiros. Na Argentina, temos um sócio local e entramos em Ruanda junto com a Intel.

Por que o setor público segue importante para a empresa?

Entramos nesse setor numa época em que existiam apenas produtos estrangeiros. O governo precisava de bons produtos nacionais. Mantemos nossa importância no setor porque nos especializamos cedo nisso.

No mercado de consumo, por que a Positivo mantém a estratégia de ter preços acessíveis para a classe C?

O desígnio da empresa é melhorar a vida das pessoas por meio da tecnologia. Isso não quer dizer que não podemos ganhar dinheiro dessa forma. Afinal, precisamos ter lucro sempre. Ou não estaríamos no mercado há tanto tempo.

As diferentes marcas da empresa surgiram para vender produtos mais caros?

Quando o mercado diminui, como aconteceu com o segmento de computadores nos últimos anos, é preciso atuar em diferentes frentes. Nossa marca para a classe média não se comunica tão bem com outros públicos. Por isso, temos a parceria com a Vaio para notebooks de alto desempenho. Lançamos a marca Quantum, de celulares, pelo mesmo motivo. Mas nem sempre acertamos a estratégia. Criamos dispositivos para casa inteligente para a classe C, com a marca Positivo, e quem está comprando é a classe B.

O governo almeja reduzir impostos de importação e abrir o mercado. O que vai mudar?

O governo é liberal e quer reduzir impostos do que não é produzido localmente. O mercado busca um equilíbrio bom para todos.

Qual é a relação entre tecnologia e educação?

Ela ajuda muito, mas não substitui o professor. Atuamos nesse setor com tecnologia para garantir a segurança em escolas, com uma pulseira que avisa os pais sobre a localização dos filhos para evitar que eles adentrem áreas de risco.

Qual é a tendência tecnológica para a próxima década?

A internet das coisas. Ela estará em todos os eletrônicos, especialmente em empresas. Sensores, processadores e chips de comunicação caíram de preço. Logo, não fará sentido nem levantar da cama para acender a luz.


Fonte: EXAME