A inteligência artificial pode substituir o ser humano no processo de seleção?



A inteligência artificial pode substituir o ser humano no processo de seleção?

 

A notícia de que o Uber recorreu à inteligência artificial para selecionar os candidatos a um estágio na empresa não chegou a surpreender. Já foi o tempo em que a tarefa era realizada usando tabelas e filtros do excel. Hoje, é comum grandes empresas recorrerem a HRTechs como a 99jobs, que usa avatares operados por inteligência artificial para avaliar critérios básicos de seleção e também habilidades específicas e traços de personalidade.

Não há dúvida de que a tecnologia agiliza e facilita o processo de recrutamento para as empresas. Mas, quando o assunto é sensibilidade e isonomia no julgamento, fica a pergunta: será que as máquinas são capazes de substituir totalmente os seres humanos?

Para David Dias, diretor associado da Accenture Technology, o analista de RH não deixará de existir, mas suas funções devem mudar significativamente. “Daqui há 5 anos, a tendência é que boa parte das atividades de RH seja feita por robôs. Será uma transição, como a da fita de VHS para o DVD. Em menos de dez anos vamos nos perguntar: como isso era feito antes mesmo?”, prevê o especialista. Na sua opinião, os antigos analistas vão passar a atuar em outras áreas, como desenvolvimento de carreira, ou até mesmo no monitoramento dos softwares, para garantir sua eficácia.

“Os aspectos cognitivos e comportamentais dos candidatos sempre foram medidos, mas não nas primeiras fases do processo", diz Juliana Nascimento, diretora de novos produtos e parcerias da Cia de Talentos. A empresa, que atua há 30 anos com recrutamento, anunciou a inclusão de duas novas ferramentas tecnológicas nos seus processos - não para substituir a atividade dos analistas, mas para oferecer a eles uma quantidade maior de informações logo no início da seleção. 

"Com as novas ferramentas, vamos medir essas características de uma forma mais inovadora e confortável para o candidato”, diz a executiva. Segundo Juliana, a tecnologia garantirá cortes mais certeiros já na primeira triagem. Nos primeiros testes, a Cia de Talentos avaliou que dois dos três possíveis contratados só chegaram até a fase final por causa da máquina.

Os analistas, diz Juliana, não serão excluídos do processo. A proposta é que eles acompanhem tudo, lado a lado com a máquina. “A presença de um ser humano supervisionando a tecnologia de machine learning será sempre necessária. É a única maneira de garantir o desenvolvimento dessa tecnologia e evitar casos de preconceito”, afirma.Uso de tecnologia no RH é essencial, mas falta investimento, aponta pesquisa

Preconceito e inteligência artificial
Uma das maiores preocupações em relação ao uso de IA seria o perigo da máquina absorver certos preconceitos, com base nos vieses de seus curadores, ou mesmo na frequência de um determinado resultado. Um exemplo foi o que aconteceu na Amazon. Ao tomar como base as contratações da empresa nos 10 anos anteriores, um robô desenvolvido para recrutamento identificou o predomínio de homens no setor. Por conta disso, passou a reproduzir comportamentos machistas e dar notas menores para currículos de mulheres.

Aqueles que aderem à inteligência artificial para recrutamento, mesmo diante de histórias como essa, garantem que a intenção é obter justamente o resultado contrário. Segundo Juliana, usando os critérios corretos, é possível criar um software capaz de selecionar candidatos somente pela afinidade entre suas competências e as características demandadas pela vaga. Sem levar em conta gênero ou da cor de pele, por exemplo.

“Quando a gente está fazendo uma etapa de pré-seleção, o ser humano corre o risco de cortar candidatos por vieses inconscientes. A metodologia que trabalha com inteligência artificial, gamificação e neurociência não considera esses vieses”, diz Juliana Nascimento.

Pedro Dellagnelo, head de produto da Revelo, também acredita que a IA pode ajudar no combate ao preconceito. "Mas, além de investir no desenvolvimento de uma tecnologia capaz de apurar o perfil dos candidatos, também é necessário trabalhar em parceria com as empresas para a valorização do “fit cultural”", diz. Por mais que o questionário não busque dados como raça e gênero, diz o especialista, outros pré-requisitos, como a universidade frequentada pelo candidato, podem acabar levando à reprodução de padrões - como a seleção de candidatos de uma mesma classe social, por exemplo. 

Du Migliano, co-fundador da 99jobs, afirma que as ferramentas da empresa apuram dados como raça e gênero, mas que estes nunca são usados como critérios de exclusão, apenas para o apoio de ações afirmativas - quando a empresa busca um processo seletivo mais diverso, por exemplo. “Quando as empresas nos pedem, nós concordamos. Mas o que fazemos não é dar pontos a mais para pessoas negras, por exemplo, mas sim ajudar a empresa a trazer pessoas que pertencem à classes minorizadas para dentro das organizações”, diz.

A diversidade parece ser o “X” da questão quando o assunto é inteligência artificial, como bem aponta David, da Accenture: “É absolutamente fundamental que o treinamento dos sistemas de inteligência artificial seja supervisionado e que essa curadoria não seja feita por uma única pessoa. É preciso que haja uma variedade de especialistas, para que o sistema não incorpore o viés que um deles possa ter.”

Tecnologia em desenvolvimento
Faz pelos menos 3 anos que a Inteligência Artificial começou a fazer parte dos processos de recrutamento - e também de outras atividades de RH. Mas a tecnologia segue enfrentando dificuldades para alcançar novos patamares, ao menos no Brasil. E ainda é difícil avaliar com precisão os resultados desse tipo de seleção.

Para Pedro Dellagnelo e Du Migliano, existe um grande déficit de técnicos especializados. “Não temos um número suficiente de cientistas de dados para atender todas as startups que buscam trabalhar com inteligência artificial. Eu consigo analisar hoje 400 pontos de contato. Mas, baseado na quantidade de dados que eu tenho, poderia ser algo em torno de 5 mil”, diz Migliano.

Na opinião de David, o maior desafio está em vislumbrar o alcance da tecnologia e encará-la como uma oportunidade, um recurso que sirva para apoiar a tomada de decisão. “A inteligência artificial vai revolucionar um modelo de trabalho que está consolidado hoje. Nesse sentido, existe uma forte barreira cultural ao seu desenvolvimento. Além disso, ainda há dificuldades em provar o benefício que o investimento nesta tecnologia vai trazer”, diz.


Fonte: Época Negócios